LITERATURA INFANTIL E INFANTICÍDIO

Uma série na Netflix, criada a partir de histórias dos irmãos Grimm, tem causado polêmica entre pais e educadores do mundo todo. Isto porque a referida série traz algumas cenas repelidas e criticadas por alguns adultos. Entre as quais, degolamento de personagens.


O fato é que, pasmem, isso é anterior à Netflix e, mais ainda, às histórias dos irmãos Grimm. Finais tenebrosos e cenas macabras nos “contos de fadas” são comuns desde a Idade Média, contados e transmitidos oralmente por jovens e adultos, sendo que as versões escritas mais antigas datam do século XVII, registradas pelo italiano Giambattiste Basile em seu “O conto dos contos”, posteriormente reescritas por Charles Perrault, pelos irmãos Grimm e outros.


Histórias como “João e Maria”, abandonados e alimentados para serem, posteriormente, assados; “Chapeuzinho Vermelho”, estuprada e devorada pelo lobo; “Cinderela”, cujas irmãs cortam dedos e calcanhares a fim de que o sapato de cristal lhes caiba nos pés; entre outros, estão presentes nas versões mais antigas dos contos de fadas, que foram amenizadas por alguns escritores, como Walt Disney, de modo que fossem mais palatáveis aos olhos e ouvidos dos leitores/espectadores atuais.


Agora, uma pergunta importante que devemos fazer é: atrocidades e malvadezas fazem parte do universo infantil? Se a resposta for positiva, por que não haveria a necessidade de livros e outras produções artísticas com esse tipo de abordagem voltadas para crianças e adolescentes?


Quem não se lembra do caso da menina Isabella Nardoni, de apenas cinco anos de idade, jogada pelos pais da janela do sexto andar do apartamento em que morava? Ou do menino Miguel Otávio, deixado à mercê da própria sorte e morto a partir de uma queda do nono andar da casa da patroa que estava “cuidando” dele, em Recife? Ou ainda do caso do menino Miguel dos Santos, brutalmente assassinado pela própria mãe e cujo corpo foi lançado num rio em Imbé, Rio Grande do Sul?, entre tantos outros exemplos, infelizmente, da vida real a que temos acesso quase que diariamente por meio das diferentes mídias.


Não à toa temos um Estatuto das Crianças e Adolescentes, criticado por alguns, mas que tem assegurado a integridade física, emocional, psicológica, social e cultural de nossas crianças e adolescentes, tão vilipendiados sob vários aspectos.


Do ponto de vista da literatura infantil, é do senso comum a ideia de que ela precisa ser “fofa”, abordar temas “leves”, ser “gostosinha” de ler etc. Muitas vezes, esquecemos que, e infelizmente, a vida de muitas crianças não é nada fácil e muito menos um “país das maravilhas”. Ao contrário, não raros são contextos tristes, enfadonhos, humilhantes, precários e de morte.


Alguns autores e editoras têm prestado atenção nisso e dedicado obras que abarquem questões pouco agradáveis para muitos, mas necessárias, como vimos antes, para uma parcela significativa no Brasil e no mundo todo, entre os quais, citamos: “Carvoeirinhos”, de Roger Mello, Companhia das Letrinhas, baseado num poema de Manuel Bandeira, abordando a questão do trabalho escravo infantil; Contos de Charles Perrault, editora Paulinas, em que traz vários contos de fadas com personagens infantis e finais não tão ortodoxos; “Uma história cabeluda de um homem e sua barba ruiva”, de Antonio Luceni, no prelo, que trata justamente de situações de infanticídio; e, por fim, “A psicanálise dos contos de fadas”, de Bruno Bettelheim, Paz e Terra, um livro teórico para quem quer se aprofundar em aspectos vários deste gênero literário, entre muitos outros que irão abarcar questões, por vezes, não muito atrativas, mas, nem por isso, desimportantes para nossas crianças e adolescentes.


O que nos constrange mais? Cenas grosseiras e agressivas ligadas à infância e à adolescência presentes nos livros, desenhos animados e filmes? Ou cenas da vida real pululando aos nossos olhos em praças, semáforos e esquinas nas muitas cidades brasileiras e pelo mundo? Fechar os olhos para essas realidades não resolve o problema.

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