MARIA BETHÂNIA

Quando eu nasci ela já era a deusa que é, contagiando a todos com sua voz, com a sua ginga, com as suas palavras, com sua expressão corporal, com seu olhar, lançando mais um show solo, Pássaro da manhã, sob a direção de Fauzi Arap.


Vez ou outra, ouvia uma ou outra canção da deusa, num ou noutro programa de rádio ou tevê, numa programação restrita e monopolizada pelos meus pais. Rádio e tevê para pobres ainda eram artigos de luxo e nós, eu e meus irmãos, não tínhamos esse poder de determinar o que ver ou ouvir. Às vezes acordava de madrugada com “A majestade, o sabiá”, entoada por Jair Rodrigues, num radinho de pilha colocado do lado de fora da pequena casa de dois cômodos, num fundo de quintal, no Taboão da Serra, quando meu pai chegava do serviço. Outras vezes, Roberto Carlos e algumas de suas canções da Jovem Guarda; Tonico e Tinoco, Milionário e José Rico e outros.


Comecei a ouvir Bethânia, e outros nomes da MPB, na adolescência, quando ingressei no CEFAM, antigo projeto de formação de professores primários, a partir de provocações de alguns professores em aula, analisando esta ou aquela canção, relacionando-as a este ou àquele episódio da história brasileira, da gramática etc. Nesse período estava sob outro poder, o da igreja evangélica.


Imagine, uma artista que, não somente em suas canções, mas também como regra de vida cultiva a fé nos orixás e tantas outras formas de visão de mundo da cultura de matriz africana e afro-brasileira, para a grande parte da comunidade a que pertencia, ouvir e admirar Bethânia, era um verdadeiro descalabro. Repeti-la, admirá-la, nutrir o que quer que fosse de positivo a respeito dela chegava ser uma espécie de pecado, de blasfêmia.


Mas como sempre fui “fora da caixa”, um “anjo torto”, insisti em tê-la comigo e, quando chegava nas “palavras proibidas” de suas canções, eu me calava, como se a negá-las todas, diminui-las, censurá-las. O que eu não sabia (e estamos falando de um adolescente, não custa lembrar) é que, ao me calar, elas soavam mais fortes e intensas para mim e em mim. Ao tentar anulá-las, tinha tempo de ouvi-las melhor, com toda delicadeza, matemática e força advindas da deusa-orixá-bethânia. Penetrava surdamente no reino das palavras e elas penetravam em mim.


“Ai, palavras, que estranha potência, a vossa…”.


E cada canção, e em cada palavra (sim, porque a deusa-orixá-bethânia é mestra na escolha, uso e pronúncia das palavras) fui sendo envolvido, disciplinado, aquebrantado e (re)formulado como homem, como ser humano. E, o divino que habita em cada um de nós, ao contato com os deuses, com o também divino que está fora de nós, transborda.


Agora, no todo, pleno do divino que a divina-deusa-orixá-bethânia ocasionou, não só a ouvia, como também repetia suas canções e versos, aprendia novos vocábulos e a força de cada um deles, advindo de uma ancestralidade que está presente em todos nós, brasileiros e brasileiras, seja a partir de nomes que batizam cidades, rios, comidas, bebidas, lendas e mitos, e também nas palavras de fé, de crença, de vida, de voz, de força.


Cerca de um ano e meio atrás tive uma experiência de quase-morte, em decorrência de Covid grave a que fui acometido. Ao ser extubado, a primeira lembrança que tenho de retornar à vida terrena foi a partir de uma das canções de Bethânia, fazendo-me pensar profundamente nas pessoas de que gosto, que têm relevância afetiva pra mim, especialmente minha mãe. “Como esta noite findará/ E o sol então rebrilhará/ Estou pensando em você/ Onde estará o meu amor?”.


Quanta saudade senti da minha família. Que falta me fizeram todos depois de quase um mês na UTI. Foi por meio desta canção que busquei me comunicar, ainda que em pensamento, com o mundo exterior; com meu mundo familiar, de amizades, uma vez que visita não podia receber, voz não tinha por conta da tráquio, escrever não conseguia por conta dos aparelhos e da precariedade física.


Esses e outros pensamentos me vieram à mente enquanto assistia “Maria, ninguém sabe quem sou eu”, documentário dirigido e roteirizado por Carlos Jardim, sobre Bethânia. De forma delicada e inteligente, são costuradas imagens de shows e de passagens cotidianas da cantora a depoimentos a partir de uma entrevista realizada com ela em 2021, no Rio de Janeiro.


Como uma espécie de “balanço”, Bethânia vai comentando trechos de sua vida, desde sua estreia ainda menina nos palcos baianos até influências e participações com artistas de relevância nacional e internacional em diferentes campos artísticos, prêmios recebidos e projetos futuros. Sim, como ela mesma se define, é uma senhora com cabeça e disposição de menina (e não é esta a principal característica dos deuses? Perceberem-se eternamente jovens?).


Sendo assim, é muito difícil mesmo saber quem é Bethânia. Mulher? Menina? Cantora? Atriz? Mortal? Imortal? Deusa? Orixá? Mulher-menina-cantora-atriz-deusa-orixá?. Entretanto, podemos arriscar algumas ideias acerca desse ser humano tão profundo, tão delicado e, ao mesmo tempo, tão forte e intenso. Maria Bethânia é luz, é força, é imaginação. É criatividade. É emoção. É poesia e doçura. É música. É atriz. É cantora. Bethânia é uma espécie de poção que nos faz bem, uma espécie de bálsamo que nos alivia a dor, mas também é pimenta; como boa baiana que é, nos inquieta, nos incomoda, nos tira do chão. Maria Bethânia e bruxa. Talvez daí a fama de marrenta. Bethânia é cachaça (ou cerveja, como é de sua preferência?) que nos embriaga e nos vicia.


É isso. Sou viciado em Bethânia. Bethânia é minha cachaça. Meu vício é Bethânia. Um vício que inicialmente evitei, mas que, como todo vício, é inevitável. A gente vai se aproximando devagarinho, vai provando aos poucos, vai gostando um pouquinho, depois vai gostando um pouco mais, e mais, e mais um pouco e, quando vemos, já perdemos o controle dele, e é ele que nos controla. E nem quero pertencer ao VBA (Viciados por Bethânia Anônimos). Sou viciado declarado, mesmo.


Como vício, não consigo viver nenhum dia sem Bethânia. Aliás, num dia, mais de uma vez por dia, me entrego a esse vício, mergulho nesse vício e ele em mim.

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