É PRECISO CORAGEM

Minha inclinação para o texto literário infantojuvenil começou no magistério, Cefam, logo nos primeiros anos de formação para atuar como professor na Educação Básica. Já contei essa história algumas vezes. A ausência de livros na minha infância fez com que, na adolescência, tratasse dessa questão com mais pressa do que o necessário. Isso se aprofundou ao cursar Letras e, especialmente, na especialização que fiz na Unesp, em Literatura Infantojuvenil.


Depois de entrar em contato com um número considerável de autores e obras, tanto nacionais quanto universais, passei a esboçar algumas linhas, buscando o texto estético como forma de me expressar.
Anos mais tarde, com um texto pronto, criei coragem e o submeti ao Concurso de Literatura Infantojuvenil “Adriana Guimarães” da Academia Araçatubense de Letras, naquele ano de 2006 em parceria com a Apeoesp – Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo. Resultado: meu texto “Júlia à procura da consciência perdida” venceu em primeiro lugar e virou livro. Aí vieram outros: “A história do Bichinho”, em parceria com Wilma Gottardi em 2012; “Poesia, pipoca e pião”, prêmio de concurso promovido pela Prefeitura Municipal de Araçatuba em 2013; e “O Menino e o Vento”, 1º lugar no prêmio nacional “Nelly Novaes Coelho” de Literatura Infantil promovido pela União Brasileira de Escritores, 2015. E já estão no forno “Mas que pressa é essa?”, “Uma história cabeluda de um homem e sua barba ruiva” e “Do meu quintal”.


Nesse exercício da escrita há também, reputo, um outro exercício importante para qualquer pessoa que queira escrever: manter-se antenado com as novidades voltadas para o público que escreve. Foi assim que entrei em contato com este livro corajoso e belo de Márcia Leite: “Olívia tem dois papais”; Companhia das Letrinhas. Por meio de palavras-chave, trazidas entre aspas (” “) no texto, a autora costura todo desenvolvimento da história de uma família não convencional e cada vez mais presente em nossa sociedade, nos mais diferentes países e culturas do mundo: filhos de casal do mesmo sexo.


Olívia é filha de dois papais, Luís e Raul, acolhida por eles por meio da adoção. É possível ler nas entrelinhas o traço que une os três: a rejeição. A menina, na condição de abandono a que foi submetida; e os pais, pela condição biológica ainda pouco assimilada por nossa sociedade, a saber, a homossexualidade.


Entretanto, distante de ser um texto amargo e rancoroso, ambas as situações, adoção e homossexualidade, são tratadas de forma muito comovente, natural e poética. Na verdade, o fato de a menina ter dois homens como pais ganha um caráter secundário no texto, prevalecendo o afeto, o carinho e a amorosidade no leito familiar. Nas perguntas e dúvidas de Olívia estão postas questões importantes para que o leitor olhe, como diria Quintana, por uma outra janela temas que, por vezes, e infelizmente, são jogados para “debaixo do tapete”, desconsiderados no universo infantojuvenil, ou mesmo rechaçados deste.


As ilustrações, bem poucas, comparadas a outros livros infantis, aparecem pontualmente como uma espécie de “pausa reflexiva”, de modo que o leitor preste mais atenção no que o texto diz muito mais no que ele vê.


Num contexto como o que estamos vivendo atualmente, em que o ataque à cultura de modo geral é uma constante, ousar tocar em temas ainda tabus em nossa sociedade é digno de aplausos. Entrar em contato, e fazer com que nossas crianças e adolescentes entrem também, com obras como esta é um ato de libertação, de ousadia, de caminhar pra frente, de evoluir para um contexto mais civilizador e civilizatório.


Um passo além, mas ainda mais ousado e que deve ser dado, é o de abordar nas histórias infantis a personagem infantil gay. A compreensão de que nós, gays, nascemos nessa condição e que precisamos ser compreendidos desde cedo como tal é algo urgente também nas produções estéticas, incluindo as histórias literárias voltadas para os pequenos.


A autora foi corajosa, em minha opinião, ao abordar tal tema de maneira tão direta e aberta, assim como coragem por parte da editora em publicar tão significativo e belo livro. Resta pensar que também outros tantos adultos – responsáveis diretos pelo encaminhamento e formação de nossas crianças e adolescentes – tenham a mesma ousadia e coragem em adotar o livro em suas escolas infantis, faculdades de educação, grupos de estudo ou mesmo individualmente para seus filhos, sobrinhos e netos.

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