CENSURADOS

O primeiro livro que ganhei foi dado por meu pai quando eu tinha cinco ou seis anos, aproximadamente. Ele havia sido descartado para o lixo e meu pai, observando minha inclinação para leitura desde cedo, escolheu a mim, entre os outros quatro filhos, para ser o guardião dele. Lembro-me da alegria que foi acordar e vê-lo ao meu lado e do prazer ao dividir aquele presente com meus irmãos, amigos e amigas de escola.


Mais tarde, quando já tinha dinheiro para comprar livros, passei a lê-los e, em seguida, acomodá-los em sacos plásticos e caixas de papelão como forma de protegê-los das muitas goteiras e da poeira que enchiam a casa onde morávamos, na periferia de Araçatuba. Mas fiz uma promessa pra eles: “Assim que puder irei dar um lugar bem bacana pra vocês morarem”. Promessa cumprida: o primeiro espaço projetado da minha casa foi justamente a biblioteca. Ao me mudar pra ela, tirei um por um daqueles sacos e caixas e, com alegria, os acomodei na linda prateleira feita exclusivamente pra eles morarem. Nas primeiras noites na casa nova dormi na biblioteca admirando-os todos.


Quando leio notícias como as vindas de Rondônia e a censura imposta, depois revogada por conta da repercussão negativa que teve na mídia, a mais de quarenta autores, dentre eles clássicos como Machado de Assis, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Ferreira Gullar, Rubem Alves, Franz Kafka, entre outros, em pleno século 21, fico a pensar: Qual relação essas pessoas têm com os livros, com escritores e escritoras, com poetas, com as artes em geral? Será que algum deles leu ao menos a introdução ou um resumo dos livros censurados? As respostas sempre são as piores: intolerância, ignorância, desprezo pela ciência, fanatismo religioso, entre outros sentimentos e ações que só nos fazem caminhar pra trás.


Na bienal do livro do Rio de Janeiro, em 2019, o prefeito da cidade, Marcelo Crivella, mandou recolher um livro de História em Quadrinhos em que dois personagens gays se beijavam num momento da história. Detalhe: os quadrinhos estavam fechados, sem exposição explícita do “beijo gay” e, atenção, um de-se-nho. Ação infrutífera, já que a obra foi esgotada antes mesmo da ordem de recolhimento.


Mais recentemente, a Biblioteca da Presidência da República foi praticamente destruída para dar lugar, pasmem, a um gabinete com banheiro para a primeira-dama, manter suas reuniões com a equipe do programa Pátria Voluntária. Entretanto, em julho de 2019, ela já havia ganhado uma sala, cuja reforma custou mais de 300 mil reais do dinheiro público. O acervo da Biblioteca da Presidência da República, composta por mais de 42 mil itens, ficou jogado, em sua maior parte, por corredores do Palácio, sem definição para onde iria. Como de praxe, houve protesto e os Bolsonaro voltaram atrás.


Coincidência ou não, em todos os casos citados acima, as ordens vieram de gestores evangélicos, o que caracteriza a postura de uma parcela da chamada ala cristã em relação ao pluralismo de ideias, ao diferente, às minorias, à ciência e tudo mais que foge do escopo conservador.


É em um livro de ficção em que história parecida irá ocorrer: num cenário “cristão”, na Idade Média, numa biblioteca onde os que ousam transgredir à proibição de ter acesso e ler livros têm como resultado a morte. Trata-se de “O nome da Rosa” de Umberto Eco. Sim, o mesmo que, pouco antes de morrer, sentenciou a internet como o espaço que deu vez e voz a imbecis. As aproximações entre ficção e realidade ficam por conta de vocês. Um conselho: se ficou interessado(a) pelo livro de Eco vá logo a uma biblioteca ou livraria e adquira o seu, antes que seja censurado também.

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