AS PALAVRAS SÃO VIVAS

Que as palavras são vivas, penso ser consensual. Que as palavras devem ser usadas de forma adequada, como uma “roupa”, não creio que haja polêmica em relação a isso. Mas na prática…


Na prática, a maior das pessoas sai usando as palavras como se fossem uma coisa só, como se propiciassem o mesmo resultado ao chegar aos ouvidos ou aos olhos dos destinatários. Entretanto, todos nós sabemos que não é assim; há palavras que nos tocam mais, para o bem ou para o mal.


É curioso o movimento do uso social da palavra “você”, por exemplo. Inicialmente comprida, era com “vossa mercê” que se cumprimentava o outro; depois, “vossemecê”; depois, algo como “vosmecê”; mais tarde “você” (permanecendo como forma padrão até os dias de hoje), mas também vemos, sobretudo em textos que exigem maior agilidade na comunicação/digitação (em mídias eletrônicas, especialmente), além de comunicações orais, variações como “vc”, “cê”, “ocê” etc… Curiosamente, a palavra “eu” permanece intocável desde sua criação. (Um caso emblemático para pensarmos em aspectos sobre individualismo, egoísmo, hedonismo narcísico, entre outros, não é mesmo?).


Já há alguns anos a Congregação Cristã no Brasil, igreja de viés pentecostal, fez revisão em seu hinário substituindo a palavra “gozar” por sinônimos, numa demonstração clara de aversão à conotação libidinosa adquirida por esta ao longo do tempo.


Na semana passada os dirigentes do SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) e suas afiliadas comunicaram que, a partir de agora, não mais usarão a palavra “companheiro” em suas matérias (faladas e escritas) para homens que cometam qualquer ato de violência contra mulher. A justificativa partiu da definição dicionaresca, ou seja, a denominação trazida para tal palavra (companheiro) não condiz com a definição de um “agressor”.


Dessa forma, ao não utilizarem “companheiro” contribuem de forma prática no engajamento da luta pela valorização da mulher, corroborando com demandas sociais urgentes em relação ao tema. A iniciativa é excelente e merece aplauso. Afinal, o mundo contemporâneo exige muitas revisões em nossas práticas cotidianas, entre as quais, a de palavras é uma delas, conforme afirma o sociólogo norte-americano Richard Sennett em seu clássico “Carne e Pedra”.


Mas se “companheiro” não serve para o homem que maltrata sua “companheira”, o que dizer do “jornalista” que não tem compromisso com a verdade dos fatos? Com o “médico” que sequer olha para o rosto de seu paciente em uma consulta? Para o “policial” que atira primeiro e pergunta depois? Para o “presidente” que cuida somente de uma parte do País? Para o “juiz” que condena sem provas? Para a “mãe” que joga seu filho na lata do lixo ou para o “pai” que o abandona mesmo antes mesmo de nascer? Para o “pastor” ou “padre” que sacrifica sua ovelha? Para o “cristão” que concorda que bandido bom é bandido morto? E por aí vai…


A grande poeta Cecília Meireles, no início do século passado, já refletia sobre “como as palavras se torcem,/ conforme o interesse e o tempo!”, e sentenciou: “Ai, palavras, ai, palavras,/ que estranha potência, a vossa!”.


É verdade, sabemos também, toda palavra tem poder. Mas não esse poder dos contos de fada, do “sim, sim, salabim”, do “abra-te, sésamo!”, do “abracadra” ou coisa assim. Trata-se de um poder histórico e socialmente acumulado: do “eu te amo”; do “você é importante”; do “parabéns” e também do “desgraçado”, do “maldito”, do “infeliz” e assim por diante. Palavras que não são somente símbolos verbais orais e escritos, mas que carregam em si a capacidade de fazer sonhar, sofrer, chorar, amar, vencer, sorrir…


Contudo, como afirma o consagrado poeta mineiro, “lutar com a palavra/ é a luta mais vã”. Talvez, ou melhor, é certo que isso irá acontecer, daqui alguns anos ou décadas, ao relermos este texto, também o acharemos mofado, com esta ou aquela palavra em desuso; com este ou aquele termo inadequado; com uma ou outra ideia obsoleta. Talvez por isso – e isso é quase certeza, os poetas e literatos são os que deveriam ser mais lidos, já que suas palavras são sempre as mais polissêmicas, as grávidas, por assim dizer. E, como grávidas e polissêmicas, atravessam os tempos, se metamorfoseiam, se cobrem de nova roupagem, se atualizam e, assim, acompanham gerações.

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